segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Amanda

Amanda é uma mulher de 30 anos. Ela tem um gatinho chamado Fred, um apartamento pequeno no centro da cidade e um namorado com bom emprego. Amanda é boa filha, uma vez por semana faz compras para sua mãe e, juntas, vão ao salão fazer as unhas. Essa semana, Amanda, escolheu um esmalte rosa e as unhas em formatos longos e arredondados. Amanda trabalha numa empresa de RH, está prestes a ser promovida mais uma vez. Sua faculdade foi paga e incentivada pelo sonho de sua mãe, por isso Amanda é tão grata e retorna tudo à ela. Amanda cuida muito bem de suas plantas, sabe adubar, fazer florir e conhece todas pelos nomes científicos. Amanda é viciada em café, gosta de um bom vinho e cerveja com os amigos. Mas ela nunca exagera, Amanda é responsável e sabe se controlar. Ela geralmente se oferece para ser motorista da rodada e leva seus amigos em segurança para casa. Amanda adora cozinhar e faz bolos deliciosos. Vez ou outra manda embalagens cheirosas para a casa de seus irmãos. Amanda é uma ótima irmã mais velha. Paga a faculdade de seu irmão mais novo e estudou para as provas com sua irmã do meio até o dela se formar em engenharia. A casa de Amanda tem o sol da manhã e ela gosta de aproveitá-lo para fazer exercícios, yoga ou se deleitar com livros imensos de ficção. Amanda é magra e não come carboidratos com frequencia. Todas as toalhas da casa de Amanda são brancas e ela mesma faz questão de lavá-las. Aliás, a limpeza da casa de Amanda é impecável, orgulho para sua mãe que sempre a ensinou a deixar branquinho os rejuntes dos azulejos do banheiro. Amanda não fala palavrão e não deita com homens no primeiro encontro, nem no segundo, nem no terceiro. Ela respeita muito seu corpo. Amanda ama correr na praia com o vento do mar batendo em seu rosto e para essas caminhadas sempre leva sanduíches para as pessoas em situação de rua. Amanda é da pastoral do acolhimento na igreja de seu bairro e já organizou diversas quermesses em prol de crianças sem lar. Amanda conheceu recentemente seu pai e começou a conviver com seus irmãos antes desconhecidos. É uma benção ter sobrinhos são bonitos. Amanda descobriu uma nova familia para amar e perdoou seu pai pelos anos afastados, hoje eles vivem como bons amigos. Amanda é é de plástico, chata pra caralho, mas consegue ser tudo de bom que esperam dela. Nunca decepcionou um amigo, sempre está disponível para todo mundo, não demora a responder whats app, consegue visitar os afilhados quinzenalmente e anda de salto fino no centro da cidade, sem nunca ter torcido o pé. 

Um dia, Amanda acordou meia hora atrasada e ficou tão desesperada para o trabalho que esqueceu de sua rotina matinal, comprou um pão de queijo com guaravita no caminho para o escritório e foi tentando arrumar a cara com pouca maquiagem no banco de trás de um uber. Nesse dia, Amanda esqueceu o telefone em casa e sua rotina estava tão cheia, que precisou passar o dia sem ele. Foi um caos, ela precisava apresentar relatórios importantes e a pressão de seus chefes fez com que ela quisesse sair correndo dali, mas ao se lembrar da próxima promoção batendo à porta, foi torta e sem jeito concluir o que precisava. No fim do dia, voltou correndo para casa, querendo tomar um vinho e relaxar. Ao chegar, seu telefone não parava de tocar, era sua irmã, reclamando de uma briga que teve com o namorado, causando o fim do relacionamento. Ao ligar o celular esquecido, mensagens de sua mãe que ficou duas horas esperando por ela no salão para atualizar a cor dos esmaltes. A mãe escreveu mensagens duras por conta da frustração de ter recebido um bolo. Os amigos de Amanda também apareceram, mas pessoalmente, contando com a motorista da rodada para a inauguração de um novo restaurante no bairro. Fred miava de fome, um lírio tinha um aspecto meio murcho. Amanda parou por dez segundos e quis muito ser duas, três, quatro ou cinco Amandas. Amanda quis ligar pra alguém, mas se sentia culpada por não ter conseguido levar bem seu dia. Amanda chorou e pensou que só gostaria de um banho quente para ver um filme antigo tomando um vinho. Ela desligou os telefones, explicou aos amigos que não poderia sair, escolheu um pijama confortável e dormiu em dez minutos de filme. O que cansou Amanda não foi o dia, ela já tinha passado por isso muitas vezes, o que cansou foi querer dar conta de tudo ao mesmo tempo para agradar a todos. Amanda dormiu até meio dia, que sorte, porque era sexta feira. O fim de semana foi de pipoca e brigadeiro, desfrutando o que tem de melhor em termos de comédia romântica anos 90 no streamming. É isso, Amanda, quem mais merecia sua atenção era você. 


domingo, 28 de março de 2021

Contradição ou diário de isolamento, em mim. - 28 de março de 2021

Tenho necessidade de viver pelo menos um dia sem preocupação. Um dia sem pensar em problemas, contas, desejos. Há alguns dias tenho prestado mais atenção à minha respiração. Por horas, parece que o ar me escapa. Sinto como se não pudesse preencher todo o meu pulmão de ar. Me dá um leve desespero. Depois eu me acalmo e faço o exercício de puxar o ar lentamente pelo nariz e soltá-lo pela boca. Repito algumas vezes, até que esqueço da sensação ruim. Hoje soube que uma pessoa que admiro, mas não conheço, não está conseguindo respirar e isso ameaça sua vida. Me deu uma angústia imensa. Na verdade me deu um aperto no peito, uma sensação de que algo se alocou dentro de mim, como uma caixinha de madeira e ela pressiona meu tórax. Enxergo a angústia dessa forma, uma pecinha que descansa no meio do peito e incomoda. Também senti minha garganta pela manhã, depois que meu marido, que reclama de uma inflamação há dias, confessou estar com medo de ser covid. Eu sei que não é, mas sei mesmo? Os dias passam e o medo aumenta, os cuidados aumentam, os vacilos são pontuais, mas não quero chamar de vacilo. Não é certo, mas não acredito que seja errado. Ver meus amigos, que também estão isolados, me renova por alguns dias. Eu não sou o chamado Alecrim Dourado, sei que deveria permanecer isolada, mas quem ainda está? Como faz pra ficar bem? Parei de beber e de comer doces e massas. Escorreguei no fim de semana, mas amanhã volto com força. Preciso entender que não posso me compensar pela tristeza cedendo ao prazer de alimentar a boca. Meu corpo precisa de menos e com qualidade. Meu corpo precisa de saúde. Meus olhos precisam de um corpo que não os deixem tristes. Eu tentei praticar o amor próprio ao meu corpo gordo. Vez ou outra, eu consigo, mas na maioria do tempo eu sinto pena de mim. Sinto raiva também, mas na maioria do tempo me sinto incapaz de conseguir dar leveza ao meu corpo. Um dia de cada vez, eu tento me cuidar. Às vezes eu falho, deixo de me olhar no espelho, mas tem noite, como hoje, que eu paro pra me ver e me amar como eu sou. Nove vidros do meu sangue me disseram que minhas vitaminas estão baixas. Sigo tomando uma penca de remédios para repor o que perdi não sei como. Tomo junto mais quatro pílulas que dizem me ajudar a perder peso. Eu não sei se acredito nelas, mas tomo. Eu não sei se acredito em mim, mas sigo. Hoje eu chorei por reconhecer erros em mim que me machucam e que machucam quem eu amo. Pensei no quanto é difícil transformar raiz em farinha. Muito amor me foi negado e hoje eu nego um tanto de amor e no segundo seguinte, a caixinha aparece lá no meio do meu peito. Eu preciso ser melhor, será que um dia eu consigo? Tenho tido medo de estar em depressão porque a tristeza dos meus dias tem permanecido, mas agora aqui pensei: “tem como ser feliz nos dias de hoje? vá lá, se dê um desconto”. Chorar me alivia, mas eu acho que já chorei tanto que tá valendo. Penso também que a correria dos meus dias não me permite chorar, não encontro tempo, aconchego, quentinho de cama. Também acho que não deveria chorar na casa que eu tanto sonhei e hoje moro. Será que um dia eu vou ser dona do meu próprio chão? Eu vivo também pra isso. Escrever diminuiu a caixinha do meu peito, escorrer três ou quatro lágrimas também. Preciso voltar a ler e quero muito organizar uma hora da minha manhã pra isso e uma hora do meu dia para exercício do corpo também. Preciso dar conta de tanta coisa, mas a verdade é que eu queria mesmo era um dia sem preocupação. Espero que lá na frente esse dia chegue e que eu perceba e agradeça por ele. E que no dia seguinte apareça um ou dois aperreios, que é pra movimentar a vida, né. Vambora.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O gurufim - 28 de Junho, 2020.

Era uma terça de sol no fim de agosto, na sala apertada estavam umas 8 ou 10 pessoas. Algumas choravam, outras contavam causos da defunta. A porta da capela abriu e entrou uma jovem senhora que beirava uns 90 anos. Ela não tinha o aspecto denso como os demais e não deu espaço para que ninguém a alcançasse até que chegasse à beira do caixão. - “Inda foi antes de mim, né. Ansiosa pra caralho toda a vida, nunca vi. Vê se pelo menos manda alguma notícia de como é o inferno pra eu me preparar”. Ouviu-se alguns risos. Essa senhora era uma amiga de mocidade de Dona Camille, seu nome poderia ser uma penca: Luciana, Thayná, Roberta, Maria, Juliana, Fabiane, Carolina… mas vou manter o mistério por aqui. 


Depois disso, ela se encaminhou pra uma mulher de meia idade que chorava sentada ao lado do caixão. - “Nina, cadê seu irmão?”. A mulher afundada em lágrimas só conseguiu apontar para a direção de um botequim. A jovem senhora acrescentou: - “E tu, tá aqui chorando por quê? Essa velha safada morreu como queria: na puta que pariu, dormindo, no mês mais sem graça do ano e depois de um porre. Por falar em porre, a gente precisa adiantar o nosso pra não desagradar a finada. Bora lá encontrar seu irmão, vamos, levanta”. 


No caminho até o bar foram alguns abraços e algumas palavras de condolências. Jorge estava cantando um samba bonito de Jorge Aragão quando avistou uma das suas tias mais queridas se aproximando com sua irmã Nina. Ao lado dele mais uma penca de jovens senhores batucando e empenhados em não deixar à mostra o fundo do copo Nadir. “Não teve amor maior, ninguém foi tão melhor, como é que eu vou esquecer você…”, cantavam em coro. 


Depois do samba, Jorge foi abraçar sua tia jovem senhora. “Eu vou me mudar lá pra sua casa que agora eu não me desacostumo a cuidar de velho mais, não”, disse. - “Deus que me defenda que tu enterrou todos os que cuidou e eu ando sem pressa. Ansiosa era a cachorra da sua mãe”, respondeu agarrada em Jorge. 


Uma lágrima aqui, outra ali, ninguém deu escândalo no velório de Camille, mais por medo da promessa que ela fez em vida do que qualquer outra coisa. Quando um via o outro se emocionar um pouco mais, logo soltava. - “Deixa de choro que ela volta pra puxar seu pé, viu”. 


Os netos de Dona Camille se dividiam entre consolo, cerveja e histórias. O mais velho, Chico, ria do dia em que seu primeiro filho nasceu. Ele contava que sua avó esteve na sala de parto com sua esposa porque não permitiu que ninguém mais visse seu primeiro bisneto nascer. Disse que ela fez um escândalo com uma das enfermeiras que estava manuseando o bebê como um saco de farinha. “- Ela não se aguentava de ver ninguém pegar a gente com a mão pesada e cuidou de todos os que vieram a partir dela com todo o amor do mundo. Eu amava quando ela me passava dinheiro escondido dos meus primos”. 


Era um velório, sim, mas muito mais uma celebração de uma vida bem vivida e Dona Camille fez questão de pedir isso durante toda a sua jornada, que entendessem que sua partida não seria ruim porque voltar ao pó depois de viver tudo o que viveu era privilégio de poucos. Pediu um samba, cerveja em grande quantidade e deixou o dinheiro separado pra essa grande farra. Bem sabiam que ela era mesmo uma pessoa que tinha compromisso com o futuro, então ninguém achou nada estranho. Era uma velha chata, sim, beberrona e faladeira, mas amou como ninguém jamais ouviu falar e deixou como legado uma família que sabia fazer amor e festa.  


Desafogos, ou cartas pra mim mesma

Faz 13 anos que minha avó morreu. Foi quinze dias depois da minha festa de 15 anos, que ela fez questão de comemorar, já alguns dias depois do meu aniversário. Tudo corrido, improvisado, mas saiu. Eu não sabia da gravidade da doença dela, me ocultaram. Eu não vi que estava perdendo minha avó. No dia que ela morreu, eu perdi o chão. Foi o pior dia da minha vida, mas eu tive sorte de ser avisada por uma criança. “vovó nininha foi pro céu’. Eu saí desesperada pela casa e encontrei umas tias consolando minha madrinha, a filha mais velha da minha avó. Eu chorava de susto, de uma dor que eu nunca tinha sentido, chorava também por ver minha madrinha chorando. Nada ali fazia sentido pra mim. No enterro eu não consegui ficar mais de dez minutos, minha família nem permitiu que eu acompanhasse. Fui pra casa da outra avó e dormi o dia inteiro, eu estava em choque. Desde então, eu venho lidando com a dor dessa perda.


Uma vez me contaram que a dor vai dando lugar a uma saudade boa, de sorrisos e memórias. Mas há pouco tempo, beirando os 28 anos, essa dor me invadiu novamente e foi muito estranho. Eu estava voltando de algum lugar com meu marido, pensei nela, imaginei como seria tê-la aqui comigo, adulta, e uma dor me atravessou sem avisar. 


Fiquei questionando o porquê de tanto tempo depois essa dor ainda doer dessa forma se me ensinaram que passa. Em terapia, Josy me perguntou o motivo de eu estar desqualificando o meu sentimento, o meu luto. Eu fiquei pensando sobre isso. Óbvio que eu não me desmereci conscientemente, eu só não entendi que ainda podia doer tanto. Até hoje continuo sentindo falta da minha avó e entendi com a maturidade que perdemos momentos muito preciosos. 


Minha avó morreu aos 57 anos, de algo que eu ainda não sei exatamente o que foi, porque os mais velhos evitaram falar sobre isso durante anos e depois eu fui perdendo a coragem de perguntar. Ela me criou até os 12, morreu 3 anos depois e eu me peguei inconformada com a brevidade de uma vida que era tão importante pra mim. 


Hoje me deu vontade de escrever sobre como eu imagino que seria se ela tivesse aqui, mas dá uma preguiça danada, sabe? Primeiro porque eu entendo que a vida tem um curso inevitável e segundo porque a falta dela permitiu que eu crescesse mais depressa porque eu me vi sem meu maior porto seguro. Mas ouvindo as músicas que ela gosta de ouvir, eu me imagino sentada nos pés dela, possivelmente dividindo uma cerveja (possivelmente porque eu não sei se ela me daria essa confiança de beber junto porque mãe não serve filho na minha família, mas no caso de vó, né, vai saber. rs), rindo dos casos que ela contava. Eu penso no quanto ela amaria o Renan, meu marido, e de como eu ficaria orgulhosa com a relação deles. Penso nos conselhos que receberia, principalmente sobre como lidar com a minha mãe. Penso no orgulho danado que ela teria da mulher que eu sou hoje, nas festas de aniversário que eu faria questão de preparar pra ela. No “tô com a minha avó, hoje não posso” que meus amigos tanto ouviriam. Penso nela ansiosa pelo filho que quero ter, na galinha com quiabo que ela me ensinaria a fazer e depois aprovaria, dando um toque ou outro. Mas é tudo ideia, né. Eu me delicio e sofro com essas imaginações, mas hoje me permiti sentir e chorar a falta que minha avó faz depois de 13 anos de morta. Sei que meu reforço com Deus no céu tá grande por conta dela que intercede por mim e sinto um amor que me ronda e me envolve. Um amor que segue motivando meus dias, me ensinando a ser boa como ela era. Te amo, viu, dona Dulcenir. Que nosso amor pra sempre viva até chegar a hora da gente se encontrar de novo. 


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O mar dos olhos

Um sorriso tão gostoso com covinhas de criança. Um riso frouxo, bobo, extenso, interminável. Um dom pra deboche que acredito ser hereditário e que diverte. Senso de humor com presença aguda. O menino com olhos de mar me encantou demais. Não faço ideia do momento em que comecei a desejar que meu sorriso se juntasse ao dele e faço menos ideia ainda do porquê. Sei que minha vida se encheu de um colorido que firmou a aquarela que já havia em mim. Somou uma, duas e três vezes. Acabei por querer que essa soma se prolongue por todo o tempo que houver. 

Menino com olhos de mar, engraçado seu riso ser tão frouxo quanto seu choro. E chora, sem vergonha, sem medo, sem controle. Simplesmente se lava. Gosto da sinceridade que habita em suas ações. Mais que gosto, eu amo. Gosto de admirar seus olhos e adentrá-los. 

A primeira vez que o olhei com profundidade tive receio. Aquele mundo novo a explorar e a surpresa de ter que fazê-lo naquele momento tal como o mar que se mostra novo e misterioso a cada vez que olhamos. Podemos morar em frente a ele, mas todo dia nasce uma sensação nova até criarmos intimidade. Depois da intimidade com o mar a gente se joga com mais prazer do que medo. Minha intimidade com o mar dos olhos do menino se deu aos poucos, talvez pela falta de luz do quarto, pela lente dos óculos e pela curiosidade de viver algo novo.

Quando finalmente consegui enfrentar seus olhos, eles estavam cheios e brilhavam mais que nunca. Ele chorava, disfarçadamente. Achei curioso saber que seu choro fluía com a mesma sinceridade de um sorriso. O amei com intensidade, desejando dar colo para que o choro inundasse a mim, feito seu sorriso.  

O menino com olhos de mar e sorriso de criança sabe ser e é. Ele rouba grande parte do meu pensamento e me inspira. Ele é de verdade e é sincero, simples. Ele é gigante e mora na alma de um menino. Ele é a promessa de um futuro cheio de alegrias.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Um dia após o outro

A gestação de uma vida é carregada de significados. O bebê que está sendo gerado recebe calor, alimento e afeto pelo cordão umbilical. Onde está escrito isso? Não está, mas se pensarmos bem sobre, fará algum sentido. As mães acreditam nisso, algumas pelo menos. Por isso cantam, conversam, fazem carinho. O afeto também alimenta o feto. Se você não acredita nisso e não quer ser convencido, interrompa a sua leitura. A vida é muito curta para lermos desinteresses.

Fui gerada na dor de uma gravidez não desejada. Não apenas indesejada, como frustrante. Não posso imaginar, nem de longe, o que passou minha mãe com 14 anos e uma criança crescendo em seu ventre. Ela aprendeu a amadurecer com um intensivão de conceber uma vida quando a sua estava começando a fazer sentido. Meu pai também era jovem, mais imaturo do que jovem, e tampouco preparado para assumir uma família. Hoje eu acredito que a vida se justifica com o tempo, minha mãe naquela época com certeza não acreditava. E talvez até hoje lute para acreditar.

Daí que em meio ao sufoco da situação, da incerteza de continuar com um erro, da frustração de desprogramar a vida (independente de um desejo futuro, ou não), crescia uma criança junto com seu filho. Chorei com a minha mãe, passei noites acordadas e senti a rejeição da vida junto com ela. Isso me foi revelado alguns anos depois, em um grupo de oração: “sua gestação foi embasada pela rejeição”. Sentido prático nenhum teve na hora. Ela não conhecia a minha história, eu não conhecia a minha história também. Nunca senti falta de um pai teórico. A vida me deu um pai prático que eu não poderia escolher melhor.

Hoje eu entendi de que modo se faz essa rejeição na minha vida e que preciso aprender com ela. Toda vez que recebo um não, a minha carne estremece. Toda vez que lido com o sentimento de frustração por não receber de alguém o que eu esperei, minha carne treme. Perco a base, entro em conflito. Pode parecer a maior bobagem do mundo, mas acredito na herança da minha concepção. Acredito que aprendi no ventre materno que o mundo muitas vezes me rejeitaria e que eu floresceria independente do sentimento.

Há poucos minutos eu não via o amanhã e na verdade não sei o que fazer com o que fizeram de mim, mas trago na cabeça a consciência de que há algo a ser resolvido e há um ciclo a ser completado. A forma eu descobrirei sozinha, sem querer, por acaso talvez. E o dia que eu conseguir, avançarei 30 casas no jogo da vida.

Tendo em mente o que me faz fraca, trabalho o que me faz forte. Sabendo onde mora a minha sombra, posso encará-la com menos medo. O processo está apenas começando. Hoje a minha força foi conquistada por meio da fé que me deu anjos para enxugar o meu choro, anjos que me ajudaram a enxergar além da nuvem de poeira. Amanhã precisarei neutralizar em mim os efeitos de rejeição que o mundo me impõe e será assim, um dia após o outro, até eu estar segura de que floresci mais uma vez para a vida. 

domingo, 1 de junho de 2014

Sobre sábados de manhã, feira e pastel

Desci naquele ponto mais distante. Ainda meio tonta de sono senti cheiro de pastel. Era a feira. Como eu podia não lembrar que sábado era dia de feira? Meio que por instinto atravessei a rua. Mais do que comprar frutas, fui visitar um lugarzinho da memória.
A feira me lembra o ritual matutino de todo sábado na casa da minha avó. Eu acordava cedo e partia apressada pra feira, comprar pão pro café e o que mais faltasse para o almoço. Minha tia me levava com a desculpa de ajudar a carregar as compras, mas a verdade é que ela sempre gostou da minha companhia. Eu gostava de ir porque, se visse que o dinheiro sobrava, tentava cavar um pastelzinho com caldo de cana. Pastel de queijo, o melhor do mundo! E a gente escolhia o cheiro-verde mais verdinho e cheiroso, chuchu, alface, refrigerante e a batata que eu descascaria quando chegasse em casa. Isso fazia parte da mística do sábado, assim como a fita do Luis Miguel. Lado A e lado B, tocando Contigo en la distancia, La barca e outro boleros deliciosos que embalavam a sacralidade do preparo do almoço.
Minha avó me dava uma faca sem ponta pra descascar as batatas, era quase uma faca de pão. Afinal de contas, eu já era mocinha e precisava aprender as coisas de casa. Óbvio que era uma tortura descascar legumes com uma ferramenta tão precária e talvez fosse por isso que ela me acordava tão cedo pra ir à feira. Imagina almoçar seis horas da noite. Quatro sempre me pareceu um bom horário para almoço lá em casa!
Engraçado uma feira me trazer lembranças tão deliciosas. E cheia de sono, mas feliz por estar revivendo uma sensação que me deixava feliz feito criança, escolhi umas laranjas, bananas não muito maduras (porque aprendi que estragam mais fácil) e quando vi que sobrou umas moedas fui logo tratando de pedir aquele pastelzinho de queijo. Sem caldo de cana porque depois que tive consciência da nojeira de conservação desses caldos, não tive mais coragem de tomar. Fui pela rua, cheia de sacolas de plástico e meu precioso prêmio quentinho nas mãos.

Minha infância foi cheia de simplicidade, de coisas pequenas que tinham uma importância enorme. A minha rotina de ir à feira aos sábado e descascar batatas vendo desenho talvez tenha sido a primeira responsabilidade que me foi confiada. Talvez tenha sido o ponto de partida para a minha independência. Eu amo lembrar da base que constituiu o que eu sou hoje. Amo lembrar que a feira me faz feliz. Amo pastel de queijo. Eu amo!